por Felipe Bragança
(publicado originalmente em O Globo em Março de 2011)
Cartas de despedida deveriam ser curtas para que ao longo da escrita delas o autor não começasse por demais a se desdobrar sobre o que escreveu. Escrevi minha primeira crítica de cinema em 2000, no finado formato cooperativo da Contracampo no qual Ruy Gardnier e Eduardo Valente eram editores, quando havia uma agenda clara a ser cobrada, cumprida e almejada por uma certa juventude carioca de cinefilia: a) o fato de que o cinema brasileiro dito de arte ou autoral estava praticamente alijado ou alienado daquilo que havia de mais pujante na cinematografia mundial na virada do século; b) a ideia de que a partir dessa observação era preciso saber resgatar alguns fios de tradições brasileiras cinematográficas que haviam se perdido e que poderiam ser de grande valia para a o rejuvenescimento dos filmes feitos aqui; e c) com o surgimento de filmes que conseguissem desfazer o nó da viuvez do Cinema Novo mesclada à absorção de vanguardas internacionais contemporâneas, o cinema feito no Brasil seria, naquele futuro distante, um objeto mais pujante… ou, no minimo, redivivo.
Fora do Brasil, os nomes de Walter Salles e Fernando Meirelles apareciam como os dois únicos nomes do cinema brasileiro de ficção a conseguir construir aura em torno de seus filmes para protagonizar essa cinematografia. O nosso desejo, desses jovens diretores e críticos cariocas, era que entre o humanismo polido de Salles e o espetáculo habilidoso de Meirelles, pudésse emergir outra forma, uma derivação mais arriscada e afiada de cinema que nos ampliasse esteticamente o horizonte. Que entre um cinema-de-arte bem composto e um cinema de explotation do imaginário urbano, outras formas de novidades cinematográficas pudéssem emergir.
Cartas de despedida deveriam ser curtas para que ao longo da escrita delas o autor não começasse por demais a se desdobrar sobre o que escreveu. Escrevi minha primeira crítica de cinema em 2000, no finado formato cooperativo da Contracampo no qual Ruy Gardnier e Eduardo Valente eram editores, quando havia uma agenda clara a ser cobrada, cumprida e almejada por uma certa juventude carioca de cinefilia: a) o fato de que o cinema brasileiro dito de arte ou autoral estava praticamente alijado ou alienado daquilo que havia de mais pujante na cinematografia mundial na virada do século; b) a ideia de que a partir dessa observação era preciso saber resgatar alguns fios de tradições brasileiras cinematográficas que haviam se perdido e que poderiam ser de grande valia para a o rejuvenescimento dos filmes feitos aqui; e c) com o surgimento de filmes que conseguissem desfazer o nó da viuvez do Cinema Novo mesclada à absorção de vanguardas internacionais contemporâneas, o cinema feito no Brasil seria, naquele futuro distante, um objeto mais pujante… ou, no minimo, redivivo.
Fora do Brasil, os nomes de Walter Salles e Fernando Meirelles apareciam como os dois únicos nomes do cinema brasileiro de ficção a conseguir construir aura em torno de seus filmes para protagonizar essa cinematografia. O nosso desejo, desses jovens diretores e críticos cariocas, era que entre o humanismo polido de Salles e o espetáculo habilidoso de Meirelles, pudésse emergir outra forma, uma derivação mais arriscada e afiada de cinema que nos ampliasse esteticamente o horizonte. Que entre um cinema-de-arte bem composto e um cinema de explotation do imaginário urbano, outras formas de novidades cinematográficas pudéssem emergir.
Nesse panorama pouco animador (com algumas novidades charmosas como Um Céu de Estrelas ou Baile Perfumado, por exemplo), a alegria que Santo Forte e Madame Satã geraram em boa parte da redação de Contracampo no ano de 2002 foi histórica por mostrar o quão sedentos estávamos por filmes que apresentassem perspectivas mínimas do que poderiam ser antídotos dessa certa “defasagem” do cinema narrativo e da dramaturgia cinematográfica brasileira em relação aos aspectos mais brilhantes que enxergávamos em filmes daqueles primeiros anos de século XXI: fluxo, intensidade, fantasmagoria e uma nova ética da imagem acima da moral narrativa.
Naquele momento, Kiarostami, Hou, Tsai e Oliveira eram nomes obrigatórios de encantamento e havia uma inegável frustração cinéfila e política ao não vermos aquelas questões cênicas, de luz, de tempo e de montagem ecoarem ou serem digeridas pelos longas realizados no Brasil. Fora eventuais filmes dirigidos por nomes marcados por estilos muito particulares e pujantes, ainda que "cristalizados" em décadas anteriores (penso em Candeias, Sganzerla, Bressane, Reichenbach…), havia a sensação de que o cinema autoral/de invenção brasileiro era tão rarefeito no panorama dos longa-metragens que até mesmo um projeto de cinema popular redivivo se fazia impossível. Seria muito difícil a reconstrução criativa de um panorama de novas formas de cinema popular, de gênero, no Brasil, sem que houvésse um lugar de autores, pensadores, projetos de cinema menos dependentes do formato industrial e mais conectados ao que de mais vivaz se fazia no cinema internacionalmente.
Nessa época, era comum em nossas conversas, já nos momentos de crise editorial da Contracampo, o fato de que talvez nos curta-metragens de 2000 a 2004 começasse a aparecer algo que, se ainda não era uma “reinvenção” dos filmes brasileiros, era no mínimo uma renovação de perspectivas. Mesmo que muitos desses curtas agissem como dublês de autoria, como karaokes de cinema, como imitação e tentativa de decalque de ícones internacionais e do cinema brasileiro autoral dos anos 70, havia uma movimentação nova de cinema no Rio, São Paulo, Ceará, Minas, Rio Grande do Sul e Pernambuco.
Quando em 2006
(o ano do racha da Contracampo e surgimento da Cinética), O Céu de Suely
apareceu no panorama brasileiro, percebemos que estávamos diante de um dos
filmes mais individualmente sintomático e potencialmente influente em mais de
uma década de cinema brasileiro: pelos elogios que ele colecionou no panorama
brasileiro de longas justamente por fazer opção pela pouca luz, por uma
dramaturgia elíptica e por uma temporalidade rarefeita que eram quase
alienígenas nesse imaginário de cinema-de-arte “oficial” brasileiro (e que há
muito identificávamos no panorama internacional). Produzido por uma produtora
renomada como a VideoFilmes e com patrocínios estatais de porte, seu sucesso gerou
nos jovens cineastas e críticos, uma dupla sensação: uma, positiva, de que
havia ali uma seara de arejamento dos longas feitos no Brasil que se abria para
um lugar contemporâneo possível; outra, a de que esse festejo pudésse causar
uma onda de reiterações estéticas como se uma nova formula tivésse sido testada
e aprovada pelo imaginário dos editais, produtores e festivais brasileiros –
algo expresso e exposto ao limite na fragilidade estética e eficiência de
projeto do À Deriva de Heithor Dhalia, 2009 (o que acaba nos sendo muito útil
como sintoma, aliás).
De qualquer forma, desde 2006, e nos ultimos 5 anos, uma verdadeira marcha de acontecimentos vem ecoando aquelas brechas ainda sem uma síntese. Aquela velha agenda da "renovação de linguagem" do cinema brasileiro começou a sair da teoria da cinefilia alternativa e se expressar em filmes, seja com o apuramento de alguns nomes já estreados na virada do século, seja especialmente com o destaque que o curta e o longa-metragem cooperativo e de pequenas produtoras começaram a ganhar no panorama internacional. Festivais como Cannes, Rotterdam, Locarno e Veneza vem selecionando filmes semi-artesanais e de pequeno aporte financeiro dirigidos por novos diretores oriundos de escolas de cinema e ou da crítica independente – nomes como Marina Meliande (que co-dirigiu comigo meus dois longas), Bruno Safadi, Marco Dutra, Juliana Rojas, Esmir Filho, Helvécio Marins, Kléber Mendonça, e uma lista de cerca de uma dezena de nomes que vai dos coletivos de Minas Gerais aos coletivos do Ceará passando por Rio e São Paulo e Recife, principalmente.
De qualquer forma, desde 2006, e nos ultimos 5 anos, uma verdadeira marcha de acontecimentos vem ecoando aquelas brechas ainda sem uma síntese. Aquela velha agenda da "renovação de linguagem" do cinema brasileiro começou a sair da teoria da cinefilia alternativa e se expressar em filmes, seja com o apuramento de alguns nomes já estreados na virada do século, seja especialmente com o destaque que o curta e o longa-metragem cooperativo e de pequenas produtoras começaram a ganhar no panorama internacional. Festivais como Cannes, Rotterdam, Locarno e Veneza vem selecionando filmes semi-artesanais e de pequeno aporte financeiro dirigidos por novos diretores oriundos de escolas de cinema e ou da crítica independente – nomes como Marina Meliande (que co-dirigiu comigo meus dois longas), Bruno Safadi, Marco Dutra, Juliana Rojas, Esmir Filho, Helvécio Marins, Kléber Mendonça, e uma lista de cerca de uma dezena de nomes que vai dos coletivos de Minas Gerais aos coletivos do Ceará passando por Rio e São Paulo e Recife, principalmente.
Nesses ultimos
4 anos, a despeito do que possam pensar alguns críticos mais nostálgicos, não
foi no seio da crítica independente que as novidades apareceram e pela primeira
vez em vinte anos talvez a crítica brasileira – a independente e a de grandes
meios - tenha que se ver diante do desafio de não mais propor agendas
geracionais no deserto, mas descer acompanhar e comentar e destrinchar os
filmes e suas interrelações geracionais sem a obsessiva fixação pelo “cinema
contemporêano” internacional como único oasis no horizonte ou nos anos 70 como
nosso Maio de 68. Uma agenda nova, um entendimento mais complexo do fluxo no cinema
contemporâneo brasileiro e seu diálogo com a crítica, um desejo de desafio aos
gêneros de forma irônica e ardilosa, de fragmentação e digestão de questões do
documentário e de personagens pós-Coutinho, do processo criativo que encontra
brechas para fugir da formula “industrial” e de equipes infladas – essa é a
agenda de 2011.
Hoje estamos no
meio de um nutritivo esfacelamento da nostalgia da História (do cinema
brasileiro) e os filmes de alguns novos diretores que chegarão às salas de
exibição nos próximos anos, tem refletivo isso na forma como expressam em suas
superficies a vontade latente de explodir os limites da boa arte e do cinema
artesanal de onde emergem. Através de uma aproximação esfomeda sobre clichês,
gêneros, estratégias e trilhos misturados no imaginário audiovisual que os
rodeia, estamos diante de um processo de longa transformação, de reinvenção do
cinema brasileiro – ainda que não se dê de maneira homogênea entre os
diferentes realizadores (ou críticos) dessa “geração”.
Uma vez
flutuando nesse "lugar contemporaneo" e de olhos abertos, lugar que
se conquistou com muita cinefilia e reflexão e trabalho, quais armas temos para
derivar e explodir com ele, por dentro dele, para nos manter em movimento?
Filmes (e esses dez anos trouxeram eles mais à tona e não tanto os “projetos” e
a velha “diversidade”) não são uma plantação de hortaliças das quais recolhemos
os mais bem acabados em ser-hortaliças e alimentar a fome que a ele ditamos
matar (seja a fome do mercado eficiente e brutamontes, seja a da crítica com a
casa nas nuvens e luneta no suvaco que alguns praticam). Filmes, amigos, são
uns monstros maravilhosos. E o ser-monstro é por si só uma não-função, uma
não-destreza. Esses diretores de cinema apaixonados por cinema (e seus colaboradores),
são esses tipos que ficam alimentando os ditos, e tentam dar a eles a melhor
forma de se mostrarem em seu esplendor para que das entrelinhas do erro possa
vir a beleza e o assombro. Um cineasta não é um autor, nem um artesão, nem tem
o glamour que se espera dele – um cineasta é só um tipo que fica feliz assim: sem
teto e sem segurança e sem necessidade de ser de fácil deglutição para suprir
uma wishlist alheia (e que sabe que ele trairia o próprio espectador se assim o
fizesse). Porque eu aprendi dos meus 20 a meus exatos 30 anos, que filmes são
um artesanato diário e coletivo, mas que CINEMA é um pouco esse prazer no
vazio. Feito o João César Monteiro (cineasta português) mexendo a bacia no Pólo
Norte… pra lá… e pra cá, no vazio. Olhem.
(Rio de Janeiro, Setembro de 2010)
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