sábado, 2 de março de 2013

MAPUTO


NOTA DE MAPUTO (arte, decadência, bichos empalhados, anjinhos  e opulência econômica)

Dezembro de 2011, Portugal: “É uma cultura da culpa a que estão tentando submeter os portugueses. Uma ideologia da culpa e da auto-punição. Essa coisa católica do auto-flagelamento!” esbravejava um dos mais talentosos produtores de cinema de Portugal enquanto me narra a situação de terror que a chamada política Sarkozy-Merkel havia plantado na consciência de boa parte da população lusitana. Nesse panorama de culpa, a “cultura” e as “artes” surgiam como de supérfluos ideais para a celebração da austeridade de um país submetido ao desencanto. Naquela mesma noite, em Lisboa, uma jovem dançarina, relatava entre cigarros e cerveja, com raiva nos olhos e lágrimas quase brotando, a tarde que passara em um encontro público com o secretário de cultura português (o Ministério da cultura acabara de ser extinto e substituído por uma secretaria de Estado): “Em um determinado momento, ele definiu sua visão de cultura em dois pólos: de um lado as instituições comunitárias que educam nossas crianças, para o qual deu exemplo um coro de Igreja infantil que muito o emocionou e que lhe pareciam como ‘anjinhos de Portugal’ para o futuro, e de outro deu vivas à uma suposta liberdade que os artistas portugueses saberiam gozar ao viver à revelia do investimento estatal, ‘como nos tempos da contra-cultura anti-Salazar`, que havia gerado grandes obras de arte lusitanas baseadas na liberdade guerrilheira e não no incentivo estatal.”  Ou seja, uma visão enevoada entre um futuro de anjinhos inocentes e um passado de inferno dictatorial idealizado como paradigma da combatividade da arte , apareciam nessa discurso relatado pela menina, como os paradigmas para uma (dis)solução cirúrgica do presente.


Três meses depois da visita à Lisboa, chego a Maputo, Moçambique, para escrever um roteiro de filme – motivo das conversas com o produtor em Portugal alguns meses antes. Ainda com a cabeça girando em torno das notícias lisboetas e o cenário de estranha opulência e “cultura da eficiência empresarial” derramada como ideologia sobre o Rio de Janeiro (e de alguma forma, no Brasil) nos últimos 4 ou 5 anos. Tenho comigo uma pequena lista de referências onde ir na cidade e logo nos primeiros movimentos um lugar me salta aos olhos ao passar na fachada:

É o “Museu de História Natural de Maputo”. Instalado em um edifício fake-manuelino do começo do século XX, o museu aparece no meio do caos e do calor da cidade como uma primeira pista do que eu procurava ou poderia encontrar. Dentro, o que se vê é uma mistura de graça com fragilidade: uma imensa coleção de bichos empalhados – ou reproduzidos em tamanho real em resina –  se espalha pelo gigantesco hall central, buscando reproduzir o solo de terra batida de uma savana moçambicana: a zebra bebe água em uma pequena fonte de água e se assusta ao ver o leão lutando contra um buffalo; um antílope se esquiva de um leopardo, enquanto um grande elefante observa a cena do alto de seus 5 metros de altura. Um caos concentrado de “momentos da natureza” se descortinavam congelados em três dimensões e dispostos em tamanho “real” sobre a área de uns 400m2 como um teatro suspenso de um “natural-selvagem” (de uma Moçambique sem Moçambique…). Dando a volta aos animais, encontro uma dupla de rapazes moçambicanos, de seus 18 anos, sentados lado a lado na pequena mureta que separa o “terreino” dos animais e o “mundo real”. De costas quase coladas ao casal de elefantes e de frente para os rinocerontes, os dois calmamente, remexem e cochicham sobre uma tablet iluminado. Tiram os fones dos ouvidos quando me vêem passar e perguntam se eu sou um “fotógrafo profissional”: “um amigo nosso quer ser fotógrafo profissional”, dizem, explicando o motivo do interesse por mim e pela câmera que carrego.  Digo que estou apenas investigando a cidade para um filme, que fiquei atraído pelo museu e pela imagem deles ali sentados no meio dos animais “como se tivéssem saído de uma máquina do tempo”, como se fossem ao mesmo tempo corpos naturais e/ou completos ETs daquele cenário. Os dois riem pra mim e um minuto depois já estão com meu mapa aberto diante dos olhos, apontando um lugar no centro da cidade com ênfase e excitação: “É aqui! Você tem que ir aqui! ” Eu obedeço.

...

A “Festa Popular de Maputo” é um espaço remanescente da década de 60, quando o país ainda estava sob as ordens de Portugal e as feiras populares eram o lazer idealizado como festa-pela-festa em meio aos dilemas sociais e a oressão colonial. Um terreiro onde máquinas congeladas de diversão permanecem  até hoje ali, como forças de uma alegria imediata, popular, ancestral, mecânica e barulhenta – pronta para o movimento (ou bote) na noite muito escura das ruas do centro da cidade. Como monumentos a uma alegria-cinética direta, sem descaminhos ou dúvidas de si, os brinquedos do parque encenam entre luzes coloridas e fluorescentes, em seu descanço, o desejo do movimento puro e do prazer expresso e fora do tempo. Eis que por um instante, entendo a conexão silenciosa, maravilhosa e estranha que se ergue entre aqueles bichos empalhados no museu e aquelas máquinas instantâneas de prazer cinético. Sinto no corpo as silenciosas conexões entre esses dois museus, ou esses dois parques, ali nas entrelinhas de Maputo, de uma cidade marcada pela busca tão recente de uma identidade nacional, de uma unidade moçambicana que confrontasse o domínio cultural e econômico português (e posteriormente o soviético).

Entre as carcaças reproduzidas dos animais “selvagens” e as carcaças dessa festa de máquinas “para o povo”, eu tinha encontrado, com a ajuda dos meninos atentos, um lugar intangível da imaginação daquela cidade e daquele país. Entre a organização lógica e “natural” do museu e a celebração do caos fugaz da “festa popular” – existia um terceiro terreiro fantasmático que a ciência do museu não resumiria como natureza e que a experiência da “festa” não exauriria como evento.
Um entre-terreiros, um limbo intocável, portanto, senão por essa investigação silenciosa a que eu me dedicava com algum esforço e com o brilhantismo dos dois meninos e seu tablet iluminado.
Pergunto agora: não estaria aí, nesse esforço, então, o objeto de conhecimento e de investigação do que defendemos como “campo das artes”? Conhecer e conectar pontos flutuantes em meio a ebulição de expressões da memória e do prazer presente e descobrir os sonhos que os comunicam e geram sentido e amplidão para o o entendimento do(s) mundo(s).

Não se trataria disso o fazer/labuta do “conhecimento” da arte agora: criar objetos que coloquem em comunicação sensível esse lugar?

A pergunta urgente é: como países e cidades em plena crise de identidade e busca do sentido de suas ações poderiam considerar supérfluo ou secundário uma investigação consistente e perene de seus fantasmáticos fragmentos cotidianos?

 A austeridade culpada atual lusitana e a fartura celebratória brasileira, se esbarram algumas vezes  na fragilidade com que (não)entendem o lugar da produção artística/cultural.

De um lado, a idéia de cortar o supérfluo em tempos de “encolhimento”, do outro, uma espécie de felicidade-dos-signos que confunde potência produtiva de eventos com vigor de sentido (o que tornaria o problema artístico da “investigação” uma coroação “secundária” para uma vitória social já-certa e baseada no consumo desses mesmos eventos).

Enquanto inovações técnicas se aceleram e a troca massificada de informações gera abruptas rachaduras no real, o processo investigativo artístico está aí não para construir penduricalhos estetas para indivíduos ou véus líricos para a sociedade ou doces confeitados para nos distrair na “viagem” – mas para dilacerar nossos fantasmas e emaranhar nossos organismos ao criar pontos sensíveis onde nos conectamos com nossos “terreiros” invisíveis e podemos pensar nossos movimentos e nossos desejos como comunidade e como corpos em afetos para além do já-visto e já-mapeado.

Seja no Rio, seja em Lisboa, seja em Maputo, é disso (de carne suspensa no tempo e luzes impulsivas) que é feito o objeto de nossas investigações. É um ofício e não um privilégio.  É um território a ser investigado, não um objeto/produto a ser deglutido ou tirado da "linha de produção".

Felipe Bragança – Moçambique, Abril de 2012