NOTA DE
MAPUTO (arte, decadência, bichos empalhados, anjinhos e opulência econômica)
Dezembro de
2011, Portugal: “É uma cultura da culpa a que estão tentando submeter os
portugueses. Uma ideologia da culpa e da auto-punição. Essa coisa católica do
auto-flagelamento!” esbravejava um dos mais talentosos produtores de cinema de
Portugal enquanto me narra a situação de terror que a chamada política Sarkozy-Merkel
havia plantado na consciência de boa parte da população lusitana. Nesse
panorama de culpa, a “cultura” e as “artes” surgiam como de supérfluos ideais
para a celebração da austeridade de um país submetido ao desencanto. Naquela mesma
noite, em Lisboa, uma jovem dançarina, relatava entre cigarros e cerveja, com
raiva nos olhos e lágrimas quase brotando, a tarde que passara em um encontro
público com o secretário de cultura português (o Ministério da cultura acabara
de ser extinto e substituído por uma secretaria de Estado): “Em um determinado
momento, ele definiu sua visão de cultura em dois pólos: de um lado as
instituições comunitárias que educam nossas crianças, para o qual deu exemplo um
coro de Igreja infantil que muito o emocionou e que lhe pareciam como ‘anjinhos
de Portugal’ para o futuro, e de outro deu vivas à uma suposta liberdade que os
artistas portugueses saberiam gozar ao viver à revelia do investimento estatal,
‘como nos tempos da contra-cultura anti-Salazar`, que havia gerado grandes
obras de arte lusitanas baseadas na liberdade guerrilheira e não no incentivo
estatal.” Ou seja, uma visão
enevoada entre um futuro de anjinhos inocentes e um passado de inferno
dictatorial idealizado como paradigma da combatividade da arte , apareciam nessa
discurso relatado pela menina, como os paradigmas para uma (dis)solução cirúrgica
do presente.
…
Três meses
depois da visita à Lisboa, chego a Maputo, Moçambique, para escrever um roteiro
de filme – motivo das conversas com o produtor em Portugal alguns meses antes. Ainda
com a cabeça girando em torno das notícias lisboetas e o cenário de estranha
opulência e “cultura da eficiência empresarial” derramada como ideologia sobre
o Rio de Janeiro (e de alguma forma, no Brasil) nos últimos 4 ou 5 anos. Tenho comigo
uma pequena lista de referências onde ir na cidade e logo nos primeiros
movimentos um lugar me salta aos olhos ao passar na fachada:
É o “Museu
de História Natural de Maputo”. Instalado em um edifício fake-manuelino do
começo do século XX, o museu aparece no meio do caos e do calor da cidade como
uma primeira pista do que eu procurava ou poderia encontrar. Dentro, o que se vê
é uma mistura de graça com fragilidade: uma imensa coleção de bichos empalhados
– ou reproduzidos em tamanho real em resina – se espalha pelo gigantesco hall central, buscando reproduzir
o solo de terra batida de uma savana moçambicana: a zebra bebe água em uma pequena
fonte de água e se assusta ao ver o leão lutando contra um buffalo; um antílope
se esquiva de um leopardo, enquanto um grande elefante observa a cena do alto
de seus 5 metros de altura. Um caos concentrado de “momentos da natureza” se descortinavam
congelados em três dimensões e dispostos em tamanho “real” sobre a área de uns
400m2 como um teatro suspenso de um “natural-selvagem” (de uma Moçambique sem
Moçambique…). Dando a volta aos animais, encontro uma dupla de rapazes moçambicanos,
de seus 18 anos, sentados lado a lado na pequena mureta que separa o “terreino”
dos animais e o “mundo real”. De costas quase coladas ao casal de elefantes e
de frente para os rinocerontes, os dois calmamente, remexem e cochicham sobre
uma tablet iluminado. Tiram os fones dos ouvidos quando me vêem passar e
perguntam se eu sou um “fotógrafo profissional”: “um amigo nosso quer ser
fotógrafo profissional”, dizem, explicando o motivo do interesse por mim e pela
câmera que carrego. Digo que estou
apenas investigando a cidade para um filme, que fiquei atraído pelo museu e
pela imagem deles ali sentados no meio dos animais “como se tivéssem saído de
uma máquina do tempo”, como se fossem ao mesmo tempo corpos naturais e/ou
completos ETs daquele cenário. Os dois riem pra mim e um minuto depois já estão
com meu mapa aberto diante dos olhos, apontando um lugar no centro da cidade
com ênfase e excitação: “É aqui! Você tem que ir aqui! ” Eu obedeço.
...
A “Festa
Popular de Maputo” é um espaço remanescente da década de 60, quando o país
ainda estava sob as ordens de Portugal e as feiras populares eram o lazer
idealizado como festa-pela-festa em meio aos dilemas sociais e a oressão
colonial. Um terreiro onde máquinas congeladas de diversão permanecem até hoje ali, como forças de uma alegria
imediata, popular, ancestral, mecânica e barulhenta – pronta para o movimento
(ou bote) na noite muito escura das ruas do centro da cidade. Como monumentos a
uma alegria-cinética direta, sem descaminhos ou dúvidas de si, os brinquedos do
parque encenam entre luzes coloridas e fluorescentes, em seu descanço, o desejo
do movimento puro e do prazer expresso e fora do tempo. Eis que por um instante,
entendo a conexão silenciosa, maravilhosa e estranha que se ergue entre aqueles
bichos empalhados no museu e aquelas máquinas instantâneas de prazer cinético. Sinto
no corpo as silenciosas conexões entre esses dois museus, ou esses dois
parques, ali nas entrelinhas de Maputo, de uma cidade marcada pela busca tão
recente de uma identidade nacional, de uma unidade moçambicana que confrontasse
o domínio cultural e econômico português (e posteriormente o soviético).
Entre as
carcaças reproduzidas dos animais “selvagens” e as carcaças dessa festa de
máquinas “para o povo”, eu tinha encontrado, com a ajuda dos meninos atentos, um
lugar intangível da imaginação daquela cidade e daquele país. Entre a
organização lógica e “natural” do museu e a celebração do caos fugaz da “festa
popular” – existia um terceiro terreiro fantasmático que a ciência do museu não
resumiria como natureza e que a experiência da “festa” não exauriria como
evento.
Um
entre-terreiros, um limbo intocável, portanto, senão por essa investigação
silenciosa a que eu me dedicava com algum esforço e com o brilhantismo dos dois
meninos e seu tablet iluminado.
Pergunto
agora: não estaria aí, nesse esforço, então, o objeto de conhecimento e de
investigação do que defendemos como “campo das artes”? Conhecer e conectar
pontos flutuantes em meio a ebulição de expressões da memória e do prazer presente
e descobrir os sonhos que os comunicam e geram sentido e amplidão para o o
entendimento do(s) mundo(s).
Não se
trataria disso o fazer/labuta do “conhecimento” da arte agora: criar objetos
que coloquem em comunicação sensível esse lugar?
A pergunta
urgente é: como países e cidades em plena crise de identidade e busca do
sentido de suas ações poderiam considerar supérfluo ou secundário uma
investigação consistente e perene de seus fantasmáticos fragmentos cotidianos?
A austeridade culpada atual lusitana e a fartura
celebratória brasileira, se esbarram algumas vezes na fragilidade com que (não)entendem o lugar da produção
artística/cultural.
De um lado,
a idéia de cortar o supérfluo em tempos de “encolhimento”, do outro, uma espécie
de felicidade-dos-signos que confunde potência produtiva de eventos com vigor
de sentido (o que tornaria o problema artístico da “investigação” uma coroação
“secundária” para uma vitória social já-certa e baseada no consumo desses
mesmos eventos).
Enquanto
inovações técnicas se aceleram e a troca massificada de informações gera
abruptas rachaduras no real, o processo investigativo artístico está aí não
para construir penduricalhos estetas para indivíduos ou véus líricos para a sociedade
ou doces confeitados para nos distrair na “viagem” – mas para dilacerar nossos
fantasmas e emaranhar nossos organismos ao criar pontos sensíveis onde nos
conectamos com nossos “terreiros” invisíveis e podemos pensar nossos movimentos
e nossos desejos como comunidade e como corpos em afetos para além do já-visto
e já-mapeado.
Seja no
Rio, seja em Lisboa, seja em Maputo, é disso (de carne suspensa no tempo e
luzes impulsivas) que é feito o objeto de nossas investigações. É um ofício e
não um privilégio. É um território
a ser investigado, não um objeto/produto a ser deglutido ou tirado da "linha de produção".
Felipe
Bragança – Moçambique, Abril de 2012