sábado, 2 de março de 2013

MAPUTO


NOTA DE MAPUTO (arte, decadência, bichos empalhados, anjinhos  e opulência econômica)

Dezembro de 2011, Portugal: “É uma cultura da culpa a que estão tentando submeter os portugueses. Uma ideologia da culpa e da auto-punição. Essa coisa católica do auto-flagelamento!” esbravejava um dos mais talentosos produtores de cinema de Portugal enquanto me narra a situação de terror que a chamada política Sarkozy-Merkel havia plantado na consciência de boa parte da população lusitana. Nesse panorama de culpa, a “cultura” e as “artes” surgiam como de supérfluos ideais para a celebração da austeridade de um país submetido ao desencanto. Naquela mesma noite, em Lisboa, uma jovem dançarina, relatava entre cigarros e cerveja, com raiva nos olhos e lágrimas quase brotando, a tarde que passara em um encontro público com o secretário de cultura português (o Ministério da cultura acabara de ser extinto e substituído por uma secretaria de Estado): “Em um determinado momento, ele definiu sua visão de cultura em dois pólos: de um lado as instituições comunitárias que educam nossas crianças, para o qual deu exemplo um coro de Igreja infantil que muito o emocionou e que lhe pareciam como ‘anjinhos de Portugal’ para o futuro, e de outro deu vivas à uma suposta liberdade que os artistas portugueses saberiam gozar ao viver à revelia do investimento estatal, ‘como nos tempos da contra-cultura anti-Salazar`, que havia gerado grandes obras de arte lusitanas baseadas na liberdade guerrilheira e não no incentivo estatal.”  Ou seja, uma visão enevoada entre um futuro de anjinhos inocentes e um passado de inferno dictatorial idealizado como paradigma da combatividade da arte , apareciam nessa discurso relatado pela menina, como os paradigmas para uma (dis)solução cirúrgica do presente.


Três meses depois da visita à Lisboa, chego a Maputo, Moçambique, para escrever um roteiro de filme – motivo das conversas com o produtor em Portugal alguns meses antes. Ainda com a cabeça girando em torno das notícias lisboetas e o cenário de estranha opulência e “cultura da eficiência empresarial” derramada como ideologia sobre o Rio de Janeiro (e de alguma forma, no Brasil) nos últimos 4 ou 5 anos. Tenho comigo uma pequena lista de referências onde ir na cidade e logo nos primeiros movimentos um lugar me salta aos olhos ao passar na fachada:

É o “Museu de História Natural de Maputo”. Instalado em um edifício fake-manuelino do começo do século XX, o museu aparece no meio do caos e do calor da cidade como uma primeira pista do que eu procurava ou poderia encontrar. Dentro, o que se vê é uma mistura de graça com fragilidade: uma imensa coleção de bichos empalhados – ou reproduzidos em tamanho real em resina –  se espalha pelo gigantesco hall central, buscando reproduzir o solo de terra batida de uma savana moçambicana: a zebra bebe água em uma pequena fonte de água e se assusta ao ver o leão lutando contra um buffalo; um antílope se esquiva de um leopardo, enquanto um grande elefante observa a cena do alto de seus 5 metros de altura. Um caos concentrado de “momentos da natureza” se descortinavam congelados em três dimensões e dispostos em tamanho “real” sobre a área de uns 400m2 como um teatro suspenso de um “natural-selvagem” (de uma Moçambique sem Moçambique…). Dando a volta aos animais, encontro uma dupla de rapazes moçambicanos, de seus 18 anos, sentados lado a lado na pequena mureta que separa o “terreino” dos animais e o “mundo real”. De costas quase coladas ao casal de elefantes e de frente para os rinocerontes, os dois calmamente, remexem e cochicham sobre uma tablet iluminado. Tiram os fones dos ouvidos quando me vêem passar e perguntam se eu sou um “fotógrafo profissional”: “um amigo nosso quer ser fotógrafo profissional”, dizem, explicando o motivo do interesse por mim e pela câmera que carrego.  Digo que estou apenas investigando a cidade para um filme, que fiquei atraído pelo museu e pela imagem deles ali sentados no meio dos animais “como se tivéssem saído de uma máquina do tempo”, como se fossem ao mesmo tempo corpos naturais e/ou completos ETs daquele cenário. Os dois riem pra mim e um minuto depois já estão com meu mapa aberto diante dos olhos, apontando um lugar no centro da cidade com ênfase e excitação: “É aqui! Você tem que ir aqui! ” Eu obedeço.

...

A “Festa Popular de Maputo” é um espaço remanescente da década de 60, quando o país ainda estava sob as ordens de Portugal e as feiras populares eram o lazer idealizado como festa-pela-festa em meio aos dilemas sociais e a oressão colonial. Um terreiro onde máquinas congeladas de diversão permanecem  até hoje ali, como forças de uma alegria imediata, popular, ancestral, mecânica e barulhenta – pronta para o movimento (ou bote) na noite muito escura das ruas do centro da cidade. Como monumentos a uma alegria-cinética direta, sem descaminhos ou dúvidas de si, os brinquedos do parque encenam entre luzes coloridas e fluorescentes, em seu descanço, o desejo do movimento puro e do prazer expresso e fora do tempo. Eis que por um instante, entendo a conexão silenciosa, maravilhosa e estranha que se ergue entre aqueles bichos empalhados no museu e aquelas máquinas instantâneas de prazer cinético. Sinto no corpo as silenciosas conexões entre esses dois museus, ou esses dois parques, ali nas entrelinhas de Maputo, de uma cidade marcada pela busca tão recente de uma identidade nacional, de uma unidade moçambicana que confrontasse o domínio cultural e econômico português (e posteriormente o soviético).

Entre as carcaças reproduzidas dos animais “selvagens” e as carcaças dessa festa de máquinas “para o povo”, eu tinha encontrado, com a ajuda dos meninos atentos, um lugar intangível da imaginação daquela cidade e daquele país. Entre a organização lógica e “natural” do museu e a celebração do caos fugaz da “festa popular” – existia um terceiro terreiro fantasmático que a ciência do museu não resumiria como natureza e que a experiência da “festa” não exauriria como evento.
Um entre-terreiros, um limbo intocável, portanto, senão por essa investigação silenciosa a que eu me dedicava com algum esforço e com o brilhantismo dos dois meninos e seu tablet iluminado.
Pergunto agora: não estaria aí, nesse esforço, então, o objeto de conhecimento e de investigação do que defendemos como “campo das artes”? Conhecer e conectar pontos flutuantes em meio a ebulição de expressões da memória e do prazer presente e descobrir os sonhos que os comunicam e geram sentido e amplidão para o o entendimento do(s) mundo(s).

Não se trataria disso o fazer/labuta do “conhecimento” da arte agora: criar objetos que coloquem em comunicação sensível esse lugar?

A pergunta urgente é: como países e cidades em plena crise de identidade e busca do sentido de suas ações poderiam considerar supérfluo ou secundário uma investigação consistente e perene de seus fantasmáticos fragmentos cotidianos?

 A austeridade culpada atual lusitana e a fartura celebratória brasileira, se esbarram algumas vezes  na fragilidade com que (não)entendem o lugar da produção artística/cultural.

De um lado, a idéia de cortar o supérfluo em tempos de “encolhimento”, do outro, uma espécie de felicidade-dos-signos que confunde potência produtiva de eventos com vigor de sentido (o que tornaria o problema artístico da “investigação” uma coroação “secundária” para uma vitória social já-certa e baseada no consumo desses mesmos eventos).

Enquanto inovações técnicas se aceleram e a troca massificada de informações gera abruptas rachaduras no real, o processo investigativo artístico está aí não para construir penduricalhos estetas para indivíduos ou véus líricos para a sociedade ou doces confeitados para nos distrair na “viagem” – mas para dilacerar nossos fantasmas e emaranhar nossos organismos ao criar pontos sensíveis onde nos conectamos com nossos “terreiros” invisíveis e podemos pensar nossos movimentos e nossos desejos como comunidade e como corpos em afetos para além do já-visto e já-mapeado.

Seja no Rio, seja em Lisboa, seja em Maputo, é disso (de carne suspensa no tempo e luzes impulsivas) que é feito o objeto de nossas investigações. É um ofício e não um privilégio.  É um território a ser investigado, não um objeto/produto a ser deglutido ou tirado da "linha de produção".

Felipe Bragança – Moçambique, Abril de 2012


sábado, 28 de julho de 2012

Entrevista com o cineasta João Nicolau



Por Felipe Bragança
(publicado originalmente no blog do filme DESASSOSSEGO em Março de 2011)

Escrevi a João depois de ter visto seu A Espada e a Rosa (Portugal, 2010) no Festival de Cinema de Santa Maria da Feira 2010, onde estive apresentando A ALEGRIA (meu Segundo longa, co-dirigido com Marina Melande). Muito feliz com o que vi na tela, e com os ecos em coisas que muito gosto de ver e filmar, escrevi a João algumas perguntas e lhe enviei no ultimo mês de Janeiro. Depois de um tempo de silêncio, me chegaram um simpático e-mail...e as respostas. (F.B.)

1 - A Espada e a Rosa me lembrou traços de Keaton, de João César Monteiro e de narrativas de aventura do século 19. Mas obviamente consegue fazer isso criando uma farsa especialmente encantadora pela particularidade de algumas sutilezas de diálogo com passagens de humor físico, de movimento e pantomima. Como foi que você trabalhou esse personagem ao mesmo tempo bufão e metódico, cheio de artimanhas com seu protagonista?


J.N.: Eu escrevi “A Espada e a Rosa” pensando já no Manuel Mesquita como o actor para representar a personagem principal. É um compincha de longa data e já tínhamos trabalhado juntos na minha curta “Rapace”. Ele já conhecia, por isso, o meu método de trabalho e sabia da enorme disponibilidade que eu exijo para ensaios. Por outro lado eu sabia que podia contar com a sua musicalidade inata, com a sua vocação para línguas e com as suas aptidões felinas (o Manuel esteve presente em todas as fases de selecção do gato Maradona). Era também importante para mim que todas as acções “físicas” fossem trabalhadas com afinco. Da estranha dança que ele faz quando em situações de apuro até ao dobrar das meias quando arruma a roupa tudo foi ensaiado com o objectivo de eliminar gestos desnecessários ou demasiado vistosos. Quando lhe pedi para passar uma piscina inteira debaixo de água sem respirar o Manuel foi para a piscina onde filmámos treinar dias antes. Um craque, em suma.
Devo ainda referir que o Manuel Mesquita (o actor que representa a personagem principal) descobriu comigo o plutex. Foi num verão há cerca de dez anos. Nós saltámos o muro de um aldeamento turístico e ficámos horas a olhar aquele azul mega artificial da piscina. Então o plutex apareceu-nos como uma evidência.


2 - Vejo uma beleza desencantada incrivel no seu filme - um romantismo forte na relação do homem com o abandono da civilização mas um desvio final que se desenha naquele retorno final dele, no lindo ultimo plano do filme. Como você pensou essa relação abandono e retorno no filme? É um filme sobre deserdar. Ele deserda de Lisboa mas depois deserda da "tripulação" em que tinha de envolvido.


J.N.: Eu não sei se ele retorna no final do filme… O que sabemos é que ele parte sozinho, de mapa na mão, em direcção à floresta. Regressará a Lisboa? Deambulará eternamente entre montes e vales buscando mais plutex? Regressará ao mar? O que é certo é que é triste. O Manel é um tipo que abandona tudo em Lisboa - foge de algo ainda pior do que não ter trabalho, dinheiro ou amor - para se juntar a uma tripulação utópica a bordo de uma caravela do período dos Descobrimentos (foi nessa época que começaram a germinar as noções de individualismo e liberalismo…). E não é que mesmo nessa “sociedade ideal” há uma traição? Pobre Manuel. Depois, nas propriedades de A Rosa, todos os companheiros sucumbem à doce vida fácil que ali lhes é apresentada. E Manuel é o único que prossegue a sua quimera.
A personagem com quem o Manuel tem mais relação no filme é com o gato Maradona. Um amigo disse-me (em tom de reprovação) que isso era triste. Eu respondi: “Pois é, o filme é sobre isso”. A sociedade é por vezes um sítio terrível, a nossa fraqueza é muito maior que a nossa fibra e só num filme eu poderia encontrar um personagem que não vacilasse, que não deixasse, por um momento só, corromper os seus princípios morais.


3 - A anarquia com que voce lida com gêneros de aventura, espionagem, ação no seu filme me faz lembrar de uma coisa que eu acho muito importante: a coragem de digerir o cinema de genero de forma altiva, ironica e ao mesmo tempo apaixonada. Queria que voce falasse da sua relação com o cinema e esses gêneros.


J.N.: Eu nunca sonhei fazer filmes. Não estudei para isso e a minha aproximação à área foi gradual (antropologia, documentário, montagem, ficção). Hoje considero-me um priveligiado por ter o trabalho menos chato do mundo: o princípio que orienta a minha actividade é o princípio do prazer. Eu gosto muito de filmes de aventura, pirataria e de filmes musicais. Gosto sinceramente. Mas para servir o argumento que me propus tratar neste filme não me pareceu que uma abordagem clássica gerasse os resultados que eu buscava. Assim que me pareceu mais proveitoso evocar e transformar géneros do que propriamente enquadrar um filme dentro de um só género. Falo disto agora assim mas é verdade é que no processo de escrita e rodagem do filme esta prática foi uma coisa intuitiva, não passou muito pelo crivo da reflexão. O gozo de ir descobrindo formas de abordar a história e as personagens é que norteou o meu trabalho. Aliás, a justaposição de géneros encontra no filme outros equivalentes como sejam a profusão de línguas que se ouvem, a condensação de épocas (um enorme computador numa caravela do séc. XV) ou a variedade de formas musicais presentes no filme. Corre-se, sem dúvida, o risco da voragem babélica mas para tratar uma aventura ligada a uma substância que mexe com a origem do universo não se pode deixar palha por virar.


4 - No Brasil, eu sinto como realizador que particularmente vivo um embate diario com nossa tradição realista, de filmes cronista do dia a dia real e da "observação". Em Portugal, pensando em Monteiro, Oliveira e alguns outros nomes, não diria que haja uma tradição hoje tao forte de realismo cinematográfico. Como você se sente no meio da cinematografia portuguesa atual? Você se identifica com outros realizadores ou imagens ou questões a seu redor em Portugal?


J.N.: Gostava de desviar a pergunta para a questão da língua. Eu acho que a língua portuguesa não facilita uma abordagem realista no cinema. É apenas uma hipótese que levanto, não sou um grande conhecedor e talvez esteja a ser injusto com a cinematografia portuguesa e brasileira (que conheço muito mal). A verdade é que a maior parte dos filmes portugueses de que gosto não “joga” bem com o realismo cinematográfico. Na verdade, não me lembro de um único filme realista português de que goste mesmo. Atenção, estou a falar apenas de ficção. No documentário, o realismo é aceite tacitamente e aí a língua não é de todo um entrave (os filmes de Eduardo Coutinho são, para mim, um bom exemplo de uma utilização proveitosa da língua portuguesa no cinema). Acho também curioso que a intromissão do documentário seja uma porta de entrada para o realismo nalguns excelentes filmes de ficção portugueses recentes (“Aquele Querido Mês de Agosto” e “Juventude em Marcha”, por exemplo) mas se calhar estou só a forçar a minha teoria. Há quem diga que o cinema português deve mais à poesia que à prosa – talvez seja outra boa perspectiva para discutir a questão. As grandes referências do cinema português, João César Monteiro e Manoel de Oliveira, são cineastas tão livres e radicais que superam o realismo ou se servem dele para operar uma transformação e elevar os temas que abordam a outros níveis. Há uma cena nas “Recordações da Casa Amarela” que ilustra bem isto. Descrevo rapidamente: o comissário da polícia investiga os pertences de João de Deus e encontra um livro de Holderlin. Pergunta-lhe “`É policial?”. Resposta de João de Deus: “Não. É celestial.”. A liberdade como Monteiro ou Oliveira usam a língua é inspiradora para mim, sem dúvida. Também me diverte muito o uso de diálogos praticamente teatrais, gosto bastante desse artificialismo e, paradoxalmente, necessito dele para acreditar num personagem. Há, hoje em dia, muitos filmes portugueses sobre “questões sociais” (a emigração ilegal, a droga, a exclusão, etc) que geralmente se esgotam nisso mesmo, em ser filmes “sobre”. E há também, felizmente, realizadores que fazem sempre bons filmes qualquer que seja o tema que abordem: Pedro Costa, Manuel Mozos, Miguel Gomes.


5 - Fala um pouco sobre sua colaboração com o Miguel Gomes. Como se dá essa parceria como fotografo e montador? Voces estudaram juntos? Começaram juntos a pensar e a fazer cinema? Vcoˆ´se identifica com ele ou é uma relação mais complementar?


J.N.: Eu estudei antropologia e, como tese de mestrado, fiz um pequeno documentário. Depois comecei a trabalhar em montagem e o Miguel foi a primeira pessoa que me convidou a montar um filme de ficção (a sua curta “31”). Nós já nos conhecíamos pessoalmente mas não estudámos juntos nem começámos a fazer ou a pensar cinema juntos (o Miguel fez a escola de cinema e foi crítico antes de se tornar realizador). Aliás, eu só conheci o Miguel depois da sua primeira curta (“Entretanto”) e só trabalhei com ele a partir da terceira (“31”). Trabalhei com ele sobretudo como montador e actor (na longa “A Cara que Mereces” e na curta “Cântico das Criaturas”), a fotografia foi só em duas curtas que foram filmadas em vídeo e nas quais a montagem decorria em simultâneo (“31” e “Kalkitos”). O Miguel trabalhou na montagem da minha curta “Rapace” e quando os meus produtores me propuseram escrever “A Espada e a Rosa” eu tive que abandonar a montagem de “Aquele Querido Mês de Agosto”, não dava para fazer as duas coisas ao mesmo tempo. O Miguel é das pessoas com quem mais prazer tenho em falar de cinema e é um amigo generoso a quem eu devo muito nestas coisas de fazer filmes. Embora recentemente não tenhamos trabalhado juntos é das primeiras pessoas a quem eu mostro um guião ou a montagem de um filme.


6 - Voce pode me contar um pouco sobre seus proximos filmes? O que anda planejando?


J.N.: Os meus próximos filmes serão duas curtas. Uma chama-se “Gambozinos” e narra as peripécias de um menino de onze anos numa colónia de férias. É claro que vai ter monstros de verdade, rap e uma tal de Tânia que deixa a cabeça do rapaz a andar à roda. A outra ainda não tem título definitivo e vai ser um filme a descobrir na rodagem. Eis as duas linhas que servem como guia de trabalho: “Um desconhecido chega a Guimarães e tenta convencer os locais a procurar a purificação através das lágrimas. Rejeitado pela população, vai encontrar consolo e companhia nas margens do rio Selho.”

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Meu último texto de cinema


por Felipe Bragança

(publicado originalmente em O Globo em Março de 2011)

Cartas de despedida deveriam ser curtas para que ao longo da escrita delas o autor não começasse por demais a se desdobrar sobre o que escreveu. Escrevi minha primeira crítica de cinema em 2000, no finado formato cooperativo da Contracampo no qual Ruy Gardnier e Eduardo Valente eram editores, quando havia uma agenda clara a ser cobrada, cumprida e almejada por uma certa juventude carioca de cinefilia: a) o fato de que o cinema brasileiro dito de arte ou autoral estava praticamente alijado ou alienado daquilo que havia de mais pujante na cinematografia mundial na virada do século; b) a ideia de que a partir dessa observação era preciso saber resgatar alguns fios de tradições brasileiras cinematográficas que haviam se perdido e que poderiam ser de grande valia para a o rejuvenescimento dos filmes feitos aqui; e c) com o surgimento de filmes que conseguissem desfazer o nó da viuvez do Cinema Novo mesclada à absorção de vanguardas internacionais contemporâneas, o cinema feito no Brasil seria, naquele futuro distante, um objeto mais pujante… ou, no minimo, redivivo.

Fora do Brasil, os nomes de Walter Salles e Fernando Meirelles apareciam como os dois únicos nomes do cinema brasileiro de ficção a conseguir construir aura em torno de seus filmes para protagonizar essa cinematografia. O nosso desejo, desses jovens diretores e críticos cariocas, era que entre o humanismo polido de Salles e o espetáculo habilidoso de Meirelles, pudésse emergir outra forma, uma derivação mais arriscada e afiada de cinema que nos ampliasse esteticamente o horizonte. Que entre um cinema-de-arte bem composto e um cinema de explotation do imaginário urbano, outras formas de novidades cinematográficas pudéssem emergir.

Nesse panorama pouco animador (com algumas novidades charmosas como Um Céu de Estrelas ou Baile Perfumado, por exemplo), a alegria que Santo Forte e Madame Satã geraram em boa parte da redação de Contracampo no ano de 2002 foi histórica por mostrar o quão sedentos estávamos por filmes que apresentassem perspectivas mínimas do que poderiam ser antídotos dessa certa “defasagem” do cinema narrativo e da dramaturgia cinematográfica brasileira em relação aos aspectos mais brilhantes que enxergávamos em filmes daqueles primeiros anos de século XXI: fluxo, intensidade, fantasmagoria e uma nova ética da imagem acima da moral narrativa.

Naquele momento, Kiarostami, Hou, Tsai e Oliveira eram nomes obrigatórios de encantamento e havia uma inegável frustração cinéfila e política ao não vermos aquelas questões cênicas, de luz, de tempo e de montagem ecoarem ou serem digeridas pelos longas realizados no Brasil. Fora eventuais filmes dirigidos por nomes marcados por estilos muito particulares e pujantes, ainda que "cristalizados" em décadas anteriores (penso em Candeias, Sganzerla, Bressane, Reichenbach…), havia a sensação de que o cinema autoral/de invenção brasileiro era tão rarefeito no panorama dos longa-metragens que até mesmo um projeto de cinema popular redivivo se fazia impossível. Seria muito difícil a reconstrução criativa de um panorama de novas formas de cinema popular, de gênero, no Brasil, sem que houvésse um lugar de autores, pensadores, projetos de cinema menos dependentes do formato industrial e mais conectados ao que de mais vivaz se fazia no cinema internacionalmente.

Nessa época, era comum em nossas conversas, já nos momentos de crise editorial da Contracampo, o fato de que talvez nos curta-metragens de 2000 a 2004 começasse a aparecer algo que, se ainda não era uma “reinvenção” dos filmes brasileiros, era no mínimo uma renovação de perspectivas. Mesmo que muitos desses curtas agissem como dublês de autoria, como karaokes de cinema, como imitação e tentativa de decalque de ícones internacionais e do cinema brasileiro autoral dos anos 70, havia uma movimentação nova de cinema no Rio, São Paulo, Ceará, Minas, Rio Grande do Sul e Pernambuco.
Quando em 2006 (o ano do racha da Contracampo e surgimento da Cinética), O Céu de Suely apareceu no panorama brasileiro, percebemos que estávamos diante de um dos filmes mais individualmente sintomático e potencialmente influente em mais de uma década de cinema brasileiro: pelos elogios que ele colecionou no panorama brasileiro de longas justamente por fazer opção pela pouca luz, por uma dramaturgia elíptica e por uma temporalidade rarefeita que eram quase alienígenas nesse imaginário de cinema-de-arte “oficial” brasileiro (e que há muito identificávamos no panorama internacional). Produzido por uma produtora renomada como a VideoFilmes e com patrocínios estatais de porte, seu sucesso gerou nos jovens cineastas e críticos, uma dupla sensação: uma, positiva, de que havia ali uma seara de arejamento dos longas feitos no Brasil que se abria para um lugar contemporâneo possível; outra, a de que esse festejo pudésse causar uma onda de reiterações estéticas como se uma nova formula tivésse sido testada e aprovada pelo imaginário dos editais, produtores e festivais brasileiros – algo expresso e exposto ao limite na fragilidade estética e eficiência de projeto do À Deriva de Heithor Dhalia, 2009 (o que acaba nos sendo muito útil como sintoma, aliás).

De qualquer forma, desde 2006, e nos ultimos 5 anos, uma verdadeira marcha de acontecimentos vem ecoando aquelas brechas ainda sem uma síntese. Aquela velha agenda da "renovação de linguagem" do cinema brasileiro começou a sair da teoria da cinefilia alternativa e se expressar em filmes, seja com o apuramento de alguns nomes já estreados na virada do século, seja especialmente com o destaque que o curta e o longa-metragem cooperativo e de pequenas produtoras começaram a ganhar no panorama internacional. Festivais como Cannes, Rotterdam, Locarno e Veneza vem selecionando filmes semi-artesanais e de pequeno aporte financeiro dirigidos por novos diretores oriundos de escolas de cinema e ou da crítica independente – nomes como Marina Meliande (que co-dirigiu comigo meus dois longas), Bruno Safadi, Marco Dutra, Juliana Rojas, Esmir Filho, Helvécio Marins, Kléber Mendonça, e uma lista de cerca de uma dezena de nomes que vai dos coletivos de Minas Gerais aos coletivos do Ceará passando por Rio e São Paulo e Recife, principalmente.
Nesses ultimos 4 anos, a despeito do que possam pensar alguns críticos mais nostálgicos, não foi no seio da crítica independente que as novidades apareceram e pela primeira vez em vinte anos talvez a crítica brasileira – a independente e a de grandes meios - tenha que se ver diante do desafio de não mais propor agendas geracionais no deserto, mas descer acompanhar e comentar e destrinchar os filmes e suas interrelações geracionais sem a obsessiva fixação pelo “cinema contemporêano” internacional como único oasis no horizonte ou nos anos 70 como nosso Maio de 68. Uma agenda nova, um entendimento mais complexo do fluxo no cinema contemporâneo brasileiro e seu diálogo com a crítica, um desejo de desafio aos gêneros de forma irônica e ardilosa, de fragmentação e digestão de questões do documentário e de personagens pós-Coutinho, do processo criativo que encontra brechas para fugir da formula “industrial” e de equipes infladas – essa é a agenda de 2011.
Hoje estamos no meio de um nutritivo esfacelamento da nostalgia da História (do cinema brasileiro) e os filmes de alguns novos diretores que chegarão às salas de exibição nos próximos anos, tem refletivo isso na forma como expressam em suas superficies a vontade latente de explodir os limites da boa arte e do cinema artesanal de onde emergem. Através de uma aproximação esfomeda sobre clichês, gêneros, estratégias e trilhos misturados no imaginário audiovisual que os rodeia, estamos diante de um processo de longa transformação, de reinvenção do cinema brasileiro – ainda que não se dê de maneira homogênea entre os diferentes realizadores (ou críticos) dessa “geração”.
Uma vez flutuando nesse "lugar contemporaneo" e de olhos abertos, lugar que se conquistou com muita cinefilia e reflexão e trabalho, quais armas temos para derivar e explodir com ele, por dentro dele, para nos manter em movimento? Filmes (e esses dez anos trouxeram eles mais à tona e não tanto os “projetos” e a velha “diversidade”) não são uma plantação de hortaliças das quais recolhemos os mais bem acabados em ser-hortaliças e alimentar a fome que a ele ditamos matar (seja a fome do mercado eficiente e brutamontes, seja a da crítica com a casa nas nuvens e luneta no suvaco que alguns praticam). Filmes, amigos, são uns monstros maravilhosos. E o ser-monstro é por si só uma não-função, uma não-destreza. Esses diretores de cinema apaixonados por cinema (e seus colaboradores), são esses tipos que ficam alimentando os ditos, e tentam dar a eles a melhor forma de se mostrarem em seu esplendor para que das entrelinhas do erro possa vir a beleza e o assombro. Um cineasta não é um autor, nem um artesão, nem tem o glamour que se espera dele – um cineasta é só um tipo que fica feliz assim: sem teto e sem segurança e sem necessidade de ser de fácil deglutição para suprir uma wishlist alheia (e que sabe que ele trairia o próprio espectador se assim o fizesse). Porque eu aprendi dos meus 20 a meus exatos 30 anos, que filmes são um artesanato diário e coletivo, mas que CINEMA é um pouco esse prazer no vazio. Feito o João César Monteiro (cineasta português) mexendo a bacia no Pólo Norte… pra lá… e pra cá, no vazio. Olhem. 

(Rio de Janeiro, Setembro de 2010)

domingo, 22 de julho de 2012

Filmar, hoje, um corpo (em alguns atos)

por Felipe Bragança


(publicado originalmente em Julho de 2007 na Revista Cinética)


O cinema como um atributo superficial, pele da imagem, da película ou do formigamento digital. A proposta aqui é pensar algumas formas de aproximação do gesto cinematográfico, da câmera-ao-corpo, na construção da espacialidade que aponta os sujeitos moventes e a instalação do sentido de “personagem” em alguns expoentes do cinema contemporâneo. Trata-se aqui, portanto, de um rápido olhar sobre a fisicalidade-cinema e as formas de atuação no espaço da imagem.

É importante, para que sigamos do mesmo ponto, um elogio detido ao sentido de “superficialidade” que aqui nos interessa: um atributo de cinema em que não nos apetece aquilo que simboliza ou remete à, mas aquilo que, em si mesmo, no grafismo imanente da imagem, é uma presença.
PRESENÇA. A superficialidade aqui é, portanto, um interesse pela camada aparente, e por aparente que não se entende falsa – o cinema com o qual flertamos aqui é um cinema que constrói “personagens” como localizações no espaço, atuações no espaço, vibrações táteis no(s) plano(s). O corpo como começo e fim expressivo, não como meio da ação ou sinal de algo além dele ou sob.
Assim, Jean Rouch. Assim, Keaton. Assim, Pedro Costa e as esfinges; assim Gus Van Sant e os meninos. Assim Apichatpong (foto acima, Tropical Malady) e seus bichos, assim Claire Denis e os organismos, assim Jia Zhangke e sua China.
* * *
A pergunta que me traz aqui, “o que pode um corpo?” (Spinoza – filosofia prática – Deleuze), pode ser revista e nos interessar ainda mais da seguinte forma: o que atua um corpo no cinema? Ou ainda: o que ele é capaz de atualizar? 
Essa é a base e pilar do que esperamos aqui refletir como construção corporal cinematográfica – a definição da imagem como um corpo atuante, e nessa atuação a proposta do sentido de personagem como construção física-superficial da dramaturgia.
Não é novo pensar na dramaturgia cinematográfica como uma dramaturgia das ações concretas, objetivas, gestuais – o cinema é uma revisitação (em aproximação e distanciamento) de gestos distribuídos como imagem. O que eu queria tatear, deixando de lado mesmo o sentido direto de ação como intervenção sujeito-objeto, é o esforço/traço cinematográfico que procura sustentar seus personagens não por acumulação de ações diretas, mas antes de tudo por suas capacidades – pelas ações em acúmulo muscular e não como gasto:
Para isso, pescando os sentidos de Spinoza para a definição de um corpo, podemos transcrever que um corpo cinematográfico pode ser encontrado sempre a partir de sua capacidade:
a)      Cinética: ou seja, um “personagem” como o conjunto de partículas de elementos expressivos que o compõe em variações de movimento e repouso. As inter-relações entre suas velocidades e lentidões – do gesto, da fala, do cansaço, da explosão muscular – esses traços que individualizam o corpo antes mesmo do “sujeito” dramático.
b)      Dinâmica: ou seja, a forma como cada corpo interfere e se fere no contato com os outros conjuntos de partículas – outros corpos. Ou seja, como se afeta ou é capaz de afetar outros corpos.
É no cruzamento dessas duas atribuições que o personagem cinematográfico que aqui nos interessa se impõe – e é claro que, de cineasta para cineasta, de filme a filme, há preponderâncias diferenciadas dos mesmos.
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No cinema de Pedro Costa, essa relação entre as figuras que o compõem é evidente como traço de gesticulação cinética: um corpo (Mario Ventura) atua um personagem (Ventura) quando atualiza suas capacidades de afetar e ser afetado – no caso de Juventude em Marcha, podemos pensar a relação de choques e entrechoques de Ventura com seus filhos e as paredes/concreto por dentro das quais circula. Esse personagem, ali, antes de compor um sentido de drama pré-moldado, é em si mesmo um caldo de possibilidades como presença diante de si: poderia se dizer que não desempenha uma função dramática, mas uma localização geométrica de expressão – ele existe porque atua, não atua para existir.
Os personagens seriam então pensados como individualidades não por sua forma primeira (penso em Apichatpong e o jogo de confusão que ele estabelece entre corpos humanos, bichos, plantas, estátuas, mecânicas e organismos) ou por sua carga psicológica amarrada; mas pela forma como passam entre os outros corpos, se chocam, atraem, repulsa e descansam.
(Uma dramaturgia cinematográfica que atua ocupando espaços em espiral – talvez “sonora” por falta de melhor imagem, talvez “musical”, sonho de toda imagem.)
Antes de ser um sujeito – um personagem em Pedro Costa ou em Apichatpong é um corpo com capacidades de interferência e inferência – o personagem/sujeito se dá pela secreção desses elementos expressivos sobre o que os cerca. Daí, nessa construção, que o lugar da imaginação, da palavra e do realismo se emulam – já que não há psicologia, IMAGINAÇÃO, que não a dos corpos. E não há nada mais real/capaz do que um corpo.
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OBS: É interessante notar esse efeito de libertação do personagem como função se compararmos o trabalho desses cineastas aos recentes trabalhos de Tsai Ming-liang: ali, o corpo aparece antes de tudo como um estado de alma, uma simulação de espírito, de estado de espírito (e não o inverso que temos, em especial, em Costa). Comparar a contemplação de Lee Kang-sheng (acima) a de Ventura nos ajuda a pensar esse caminho: uma é a contemplação de um estado de alma que submete, como signo, um corpo (Lee), a outra é um estado de corpo que decalca um estado (Ventura). Daí a palavra em Pedro Costa, como elemento físico da imaginação ser fundamental (como em Straub sempre o foi) e o silêncio de Tsai Ming-liang se tornar gesto de segregação (como em Antonionni).
Em Tsai Ming-liang, especialmente em seus filmes mais recentes, me parece que essa preponderância da alma-signo sobre os corpos tem  levado suas imagens a um fetiche que se poderia chamar de uma sublimação gráfica do presente – que o afasta do cinema-sintoma de seus primeiros filmes (tendência corporal, da imagem como doença ou sensação) em direção a um cinema-metáfora.
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Essa diferenciação é importante porque aqui, note-se, não está interessando necessariamente um cinema focado na não-trama, ou na ação não-dramática. Seguindo nosso o trajeto e retomando a pergunta inicial (“o que pode um corpo?”), o que estamos pensando aqui é um certo sentido de dramaturgia/narrativa de cinema em que se anula a questão “quem é o personagem?”, se impondo no lugar a questão “o que pode esse personagem?” É a partir do que um personagem pode ou não pode, que se desenhará um sentido de trama, não o inverso. O que é completamente diferente, percebamos, de uma anulação da trama.
Em um filme como Last Days, Gus van Sant exprime de maneira firme essa proposição ao se entregar ao tempo e ao gestual de sua figura, de seu vulto. A trama pré-conhecida do suicídio não deixa de ser narrada como acúmulo e relação de eventos, mas não se novela como funcionalidade. São as impressões e variações de cansaço daquele corpo que inferem a narrativa. Eu vejo, antes de narrar.
Não pensemos, porém, na lógica de um cinema que negue o lugar do roteiro, da construção de ganchos e conexões dos elementos (a noção de abstração ou de sensorialidade pura), a diferença está naquilo que se interessa enganchar, nos tipos de elementos de roteiro que se desenham para esse grande tabuleiro que se abre diante do filme e diz a ele: não me atravesse, me ocupe! (os reality-shows-de-convivência, tipo Big Brother Brasil bebem dessa mesma premissa e tem resultados brilhantes em momentos particulares).
Da mesma forma, na recorrência da mistura entre o lugar do intérprete e do interpretado (os meninos de Van Sant, os personagens-bichos de Apichatpong, Ventura/Vanda em Costa) o que se nota é a ausência da lógica interior-exterior em que o ator apareceria como um agente que declama um personagem ou um corpo que é habitado por um personagem. Nem uma coisa nem outra: a mesma operação que funde o sentido de real/corpo e imaginação/palavra nesse cinema, confunde agente criativo e criação. Quando Apichatpong Werashetaul confunde seus corpos humanos com corpos de animais e plantas (foto acima:Tropical Malady), quando Pedro Costa mistura e choca Ventura com as infiltrações ou o branco das parades, não vemos ali um ator vestindo uma idéia, mas um corpo que é, em si mesmo, uma idéia.
É a mesma substituição que Claire Denis (junto com sua fotógrafa, Agnès Godard) parece fazer de seus atores por suas peles, seus bafos, seus movimentos antes de serem atores – anulando as personas em prol de uma certa sintonia luminosa (ao lado, Vendredi Soir). É, de alguma forma, e de forma inversa, aquilo que a potência da interpretação em Cassavetes vai construir em seus filmes: um sentido de coesão extrema da técnica e somada a um certo “descuido”, uma falha na verdade cênica, que infere ao personagem um ultrapassamento de seu estado de “enunciado dramático” ou ícone discursivo.
A idéia, o desejo cinematográfico é, aqui, então, corpo. Não se fala dela (a idéia) na imagem – se fala com ela.
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Esse movimento pode ser visto na circulação dos corpos em Elefante, onde a ação drástica não é senão elemento constitutivo de um mesmo caldo de ações e atuações em que não existe um referencial do discurso senão aquele que os corpos presentes são capazes de celebrar.  A superficialidade dessa circulação dramática não é, portanto, um esvaziamento político do corpo. O político justamente, aparece em seu sentido de afirmação antes de tudo de um afeto primordial; como a afetividade se torna pilar para a composição das trocas expressivas da imagem, do cinema todo.
Da mesma forma é impressionante ver como no cinema de Jia Zhangke, em especial dePrazeres Desconhecidos até agora (ao lado,Still Life), essa brecha do político encontra nos coletivos, nos espaços de coletividade, onde a câmera transita em ruínas e por grupos de homens, festas, colegas de trabalho, um sentido de testemunho do todo, de intuição do todo – de um todo China e mundo. A política e o coletivo em Jia Zhangke (e não menos em Costa) retoma, sussurrada  mas não diminuída, os corpos primeiros de que se secreta. Como o sonho e o prazer em Denis (de Vendredi Soir a seus trabalhos com a dança, passando por O Intruso), são uma reforma da própria percepção da polis pelo atos dos corpos que desejam-se e se atritam...
Atrito! E por isso um sentido de cinematografia amorosa nos aparece aqui como nomenclatura adequada. Seja na afirmação sonora da palavras caboverdianas, seja no murmúrio ou no berro do Kurt Cobain mimetizado, seja na flutuação dos corpos pelas corredores de um hospital (Síndromes e um Século, Apichatpong – mistério a ser revisto): a fala, as palavras, o som da boca e dos gestos sonoros (choques de partícula) nos remetem a uma cinematografia construída na pan-qualificação dos sujeitos, dos objetos como sujeitos, e das paixões que neles se evocam. Não interessa a descrição ou o sentido de corte crítico (que me desculpem os analíticos), mas um interesse pelo amoroso encontro entre as partes, numa espécie de dança em que a câmera-drama se infere como parceira: os sujeitos-corpos se tornam sujeitos pela interferência mútua, não por premissa discursiva
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OBS: Mais uma vez, é interessante pensar as imagens de um Big Brother Brasil e a emergência do drama a partir dessa simulação de normalidade construída pela intensificação e adensamento geográfico (a demografia do afeto nos reality show de convívio nos metros quadrados da casa é o estopim): catalisação amorosa, odiosa, tátil, do que depois, chamem como quiser, se torna competição e entretenimento, show de méritos e gênero. 
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Nesses cinemas que aqui olhamos de relance, o próprio sentido de figuração, figura e fundo, protagonismo, se perde porque não há fundo senão aquele que se depreende ou se choca como agente do personagem, e vice-versa, não há pequenez dramatúrgica nem eventos centrais, há mediações de espaços e brechas. O evento dramático, a ação dramática é achada como erupção física (mais uma vez, Elefante ou Last Days) e não como encadeamento cronológico de onde o filme adviria como simulação dramatizada de um arco psicológico. Personagens aqui são a sua capacidade de se apontar adiante, de se projetar como um corpo que brinca, que DANÇA (vale lembrar a Pocahontas de Malick, para não cometermos injustiça...), que joga. Personagens aqui são aquilo que falta, aquilo que se dá como falta.
O corpo , filma-se o corpo então – o personagem ainda não. O drama não há –porque é a própria imaginação e a imaginação já é cinema. O drama é o vácuo que um corpo-em-ato propicia diante de si e ocupa incessantemente no plano – como um burro que segue a cenoura presa à sua testa na imagem da parábola. O drama não é evolução temática, visita a museu, encontro com fatos. Daí o personagem, nesses cinemas, aparecer como elemento a se mapear, não a se destrinchar. Pois o mapeamento se dá como descoberta da circulação, não da intenção final – os tabuleiros não se pensam além dos planos. Eduardo Coutinho (acima, Edifício Master) é um desses estudiosos da cena que repetem a saudável ladainha de que o que lhe interessa é o que está ali, o que aparece – o que aparenta. (porque algumas coisas aparentam mais do que outras). E tão mais rico será o personagem, quanto mais ativável for o corpo que ali se apresente.
Fica, portanto, o interesse, por um cinema que repense (em especial no Brasil) hoje sua dramaticidade não a partir de eventos ou temas ou premissas globais de relevância, mas da escala do corpo como lugar de peso e volume, do gesto (antes das funções de classe), em que a multidão tem afetos e capacidades de afetar para além das manobras narrativas ou das induções descritivas do que se quer como real cotidiano ou identidade cultural (seja ela “central” ou “periférica”).
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Mas, afinal, o quê pode um corpo apaixonado? O que pode um filme?
Siga-se pensando.

Corpo, Imagem contaminação e aventura

por Felipe Bragança


(publicado originalmente na Revista Cinética em 2006)


1. A narração cinematográfica aí está e se propaga, persistindo. O que se move... se figura: ao mesmo tempo em que é não mais alinhavada pelo que desdobra em moral representativa, mas naquilo que faz dela o sentido próprio de novelo. A novela/novelo permanece. A imagem mesma, em contração, não descreve o que se move: ela mesma se move, ao que a ação do corpo-imagem se transpira na narratividade dos eventos. O que pode um corpo-imagem? O que pode um filme?    


2. Deleuze indicava no cansaço o estado corporal por excelência de um cinema capacitado para a apreensão do novo, do desvio. Um cansaço que é antes de tudo uma acumulação de ações já dadas e uma possibilidade infinita de ações ainda incertas. Circular, dar o tom, em torno dessa contração espasmática da imagem em forma de reflexão da ação descontraída. O corpo, sem saber, não atua como elemento de intervenção exterior, mas como uma não-ação que se estuda como afirmativa, dado de dispersão que é um desvio do ato solicitado.A imagem cansada vibra em si mesma e pode, nesse desvio desobediente, se transfigurar em ato de afirmação. Saber-se não agir, saber se instrumentar e se fundar numa possibilidade de lacuna entre o estímulo programado e a reação programática. Um estado de um corpo-imagem que se desvia naquilo que renuncia.

3. A contemplação não basta. Mas dela fica a premência da superficialidade da imagem. Uma superfície não contraposta ao conteúdo que carrega, mas ela mesma, presença verdadeira. O cansaço, ao contrário da tristeza, nos leva à superfície. E nela, nessa película ensimesmada, outras superficialidades talvez aflorem em sentidos de ação que não mais se bastam como descrição espacial, como coletânea de momentos. A ação que aqui se pensa é intempestiva, fora de hora, desajustada a um percurso funcional. O corpo que narra, não faz – o corpo-imagem é em si mesmo a sua ação narrativa, como uma modulação de sua presença – que intervenção no mundo-imagem é possível para uma imagem-corpo que se faça nem como instrumento nem como declamação? 

4. Cinema de aventura. Cinema-aventura. Gestos diretos que ocorrem como faíscas, peripécias – não como reflexos condicionais de um lugar-personagem que funciona. Talvez aqui possamos indicar dois gestos de interesse: a Raiva (direta, abrupta e presente – que se desvia do lugar do Ódio recalcado) e a Alegria (imediata, elétrica, positiva expansão – que se esgueira ao desvio do happy-end con-formado) como dois pólos privilegiados desse aventurar-se. Aventura, porém, aqui, como construção de uma contaminação do olhar através da imagem, um gesto antes de tudo fabular, atuado em presença como uma ética quase religiosa da imagem, não como postulado descritivo e analítico do gesto. E aí, talvez, se dê a diferença entre a descrição das ações como equações sem resolução exata (o niilismo da narração fragmentada ao passo de inutilidade) e das ações cinematográficas como, em si mesmas, um comportamento da imagem nunca vista como canal, mas como território político que se dá em desvio do retratismo social ou da crônica cultural.

5. De que vale fazer cinema se para dizer como as coisas são? Se as coisas o são, que sejam. O que o cinema tem a ver com tudo isso?  Daí a se acreditar numa contra-prova fantasista como negação do cotidiano são outros quinhentos... Mas mesmo que fujamos do universo da imagem alegorista, celebratória da farsa, analítica por decalque, há algo HOJE que esteja entre a contemplação e o frenesi adesista dos psi-antropólogos de plantão. Entre o ato onipotente e o ato desinteressado, há um lugar onde o corpo ainda atue no espaço e no tempo como ruptura, invenção, ainda se desdobre como organismo contaminante e frágil?

6. Apichatpong Weerashetakul. /João de Deus. / Madame Satã. / O tubarão-tigre de Wes Anderson. / Santo Forte. / O Hulk de Ang Lee no deserto. / Picolli voltando para casa. / O Paraíso de Godard. / O solo de guitarra na janela, de Van Sant. / A mulher que vai e volta em Jia Zhang-ke, empurrada dezenas de vezes. / O amor quando voa de Bressane. / Os prisioneiros das grades de ferro com a câmera na cela. / O rosto de Eastwood. / A dança sob a chuva forte em Shara.

7. O grande desafio de um cinema contemporâneo que explorou o cansaço, a estagnação, o formigamento e a fruição contemplativa ao longo dos anos 90 e início dos 00 parece ser descobrir, hoje, quais formas de ação imagética ainda são possíveis por dentro desse esvaziamento dos eventos, dessa rarefação da imagem-instrumento. Que formas de transformação e animação da imagem ainda podem se dar através de movimentos positivos, apaixonados, não mais gerados como absolutos narrativos/ideológicos, mas como vontade superficial, orgânica e contaminante, presentificada nos corpos e gestos imaginados em si mesmos.

8. Como fazer um cinema presente com tanto passado na cabeça? Um esquecimento afirmativo e uma memória fabular podem nos ser úteis. Café Lumiére, por fim e de começo,  nos deixa livres para andar.

FILMAR, HOJE, UMA CIDADE

(publicado originalmente na Revista Cinética em 2008)


Mecanizada como engrenagem de ordenação, idealizada como cosmos social criativo, a cidade é hoje o lugar tanto da celebração do impossível, em seus palácios de bem-estar e sua construção da imagem em forma de rotina, como também da impotência individual do olhar e da busca pela fuga, pela migração, pelo desvio subterrâneo. Este é um comentário curto sobre o olhar para as cidades em alguns filmes recentes, procurando sentidos de cinema na luz que se projeta entre paredes, rebate-se em superfícies, e se perde entre recortes e molduras.
Geminado, emaranhado à dramaturgia, ao gesto do ator, ao quadro, está o lugar em que o corpo se realiza – o cenário cinematográfico como tabuleiro de imersão e emersão de um corpo aberto a ser habitado. O filme que habita as cidades é o que nos interessa aqui. Um convite a algumas formas entusiasmadas de olhar o espaço urbano como molde e ruptura fundamental do tempo que o sustenta.


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Imersão

Claire Denis (Vendredi Soir) – cidade-luz;

Vendredi Soir (2002) é o começo de nosso comentário: um filme estruturado como carga sensível de superficialidade (traço recorrente na obra da diretora), e que aqui transforma sua trama narrativa em uma espécie de sussurro luminoso anterior aos gestos. A cidade de Paris encontra no cinema de Denis um esforço no sentido de uma vibração orgânica das imagens, onde o concreto das ruas, as luzes dos carros, o peso das construções é transformada em suspensão quase alquímica. Agnés Godard (fotografia) e Denis transformam concreto em luz ou, ao contrário de buscar uma cidade que recorta a luz, encontram uma cidade que se ergue da luz.
Antítese da paisagem vasta e do olhar épico em que a luz se “deita” sobre a superfície, os pedaços de cidade em Vendredi Soir são em si mesmos construções sensacionistas. A cidade toda ecoa, transpira, em um impulso corporal que é mediado pelos personagens em uma espécie de caldo da onde a narrativa se secreta.
O urbano aqui não se dá como espaço opaco a ser ocupado, mas como sentido de ritmo (aí o jogo de luzes dos faróis no tráfego intenso) e de dispersão luminosa (a umidade dos focos de luz, os focos e desfoques). O que se vê são profundidades e sombras, que se atravessam e se emaranham. Antes daquilo que se desdobra, a narrativa cinematográfica aqui é aquilo que desenha formas e instala visibilidades – não justapondo ruas, edifícios e esquinas, mas acumulando-as em sobreposição de ângulos, de rastros, de volumes. Refratando-se e se chocando, dispersando-se e se focando. A cidade, toda ela, como a luz que ela emana.
Hou Hsiao-hsien (Café Lumiere) – cidade-som;

Ocupar um espaço/filme em Café Lumiére não é avolumar seus objetos/eventos, mas antes de tudo avolumar sua disposição e harmonia. Este é nosso ponto de partida. A descrição de gestos, nessa homenagem ao sentido de um cinema elementar, é um estudo sobre aquilo que recria a superfície dos gestos para além de sua localização isolada no espaço. A cidade de Tóquio aqui é encontrada não como o clichê de um dilema tradiçãoXmodernidade, mas como um tempo, ou acúmulo temporal, que se dá nos espaços vazios que se acoplam na circulação dos corpos, nos túneis de metrô, nos trilhos de trem, nos cômodos das casas. Espaços vazios que, na cidade, são tomados pelo som que os ocupa, pela sonoridade que os reverbera como uma caixa de ressonância.
A idéia de uma amplificação e variação de vibrações substitui a cidade sem memória ou onde as memórias se sobreponham, e ergue a cidade como memória sonora. A idéia de amplificação sonora, para todas as direções, nos é conduzida tanto como o objeto de desejo do jovem protagonista como pela pesquisa musical realizada pela jovem. A recorrência do trem urbano como circulação e itinerário sonoro pesquisado reiteram esse sentido de um movimento que não segue a linha reta causal (em que os pedaços obedecem normas), mas linhas melódicas entrecruzadas, em que as partes se dão como harmonia e desarmonia. O espaço urbano se ergue em Café Lumiére como emaranhado musical – o mesmo emaranhado onde se esconde a música do passado que a menina quer reencontrar. Um cinema como este é um cinema que tira do corpo seu distanciamento e/ou antagonismo com o espaço, e fazem do pôr-em-cena uma arte da composição. Os sons dos corpos não se anulam, mas se misturam. A cidade-sonora muda e se desdobra pela contaminação desses sons, desses tons e sub-tons memoriais. Uma Tóquio aqui que não abriga vozes, mas que é, ela mesma, a forma como essas vozes ocupam a cidade. A história urbana e a construção da cidade cinematográfica se dão então como mixagem sonora – ao mesmo tempo os mesmos sons, que se repetem, ao mesmo tempo totalmente outros pelas modulações por dentro de sua textura. Nem amnésia, nem embotamento. Nem o urbano como morte espiritual, nem como seu excesso. Um cinema em que a cidade não se perde pelo usual ou pela rotina, mas que resiste como vivacidade aos ouvidos mais atentos. Aos pequenos ouvidos.
Emersão:
Jia Zhang-ke  (O Mundo) – cidade-torre;

E o que há para além da instalação? O mundo todo vê a cidade ou a cidade constrói o mundo todo que a vê? A Pequim de Jia Zhang-ke em O Mundo levanta aqui uma outra formulação – a da cidade-totalidade por reprodução. O eixo da observação urbana aparece aqui como filmar na cidade tudo o que não é dela. Porque talvez esteja aí uma base de reflexão imagética das cidades hoje: a cidade aparenta sempre tudo aquilo que ela não é. Não por aparência falsa – mas por essência superficial: a cidade, o urbano hoje, se caracteriza por uma reprodução de elementos estranhos a ela. Quando mais alteridade, mais urbanidade. A cidade é o que nela se torna deslocado.
A Pequim de Jia Zgang-ke não é, então, lugar confortável, construído como um todo, mas uma coleção fragmentária de alteridades. E seria nessa indisposição imagética de signos e espaços que ela, de alguma, forma se tornaria mais presente, mais real. É central no sentido da identidade imagética urbana hoje esse sentido de torre de vigília – de paradoxo de construção cujo propósito é não se olhar, mas olhar para longe. Os restos, os vultos, as sombras do mundo todo que se vê do topo dessa cidade-torre é o que constróem a cidade – mas não há mundo outro totalizado senão o que essa vigília pode construir. Os planos da cidade imensa, das torres, do parque de diversões que simula/imita outras cidades são a cidade possível de uma imagem saturada – mas Jia Zhang-ke dribla a saturação. Não há cidade-imagem que não o Mundo, não há mundo que não o que as cidades, pólos de cristalização, encontro e ordenação de fetiches e derivas visuais, nos narram. Pequim é a torre de vigília de seus personagens. Filmar uma cidade é filmar a luz que ela emana no reflexo do que ela vê.  E, nesse sentido, o trágico se instala como imitação do trágico, e a cidade retoma sua história como vontade de presente.
Jean-Luc Godard (Nossa Música) – cidade-cratera;

Em Nossa Música, a cidade falta – porque é a força motriz do que constrói também pelo que ela ausenta. A cidade ao se fragmentar é a negação da paralisia – pela falta de seus pedaços de seus lugares, a Sarajevo atingida pela guerra nega a História como permanência, nega a permanência como história. A paisagem urbana em Nossa Música aparece em outro viés – o vi és de cratera, de afirmação negativa do espaço. O que não está lá, está lá. E o que não está lá pode se reafirmar e desviar. A cidade em afirmação pelo que lhe falta, pelo que lhe fere, tira aqui a ordem de seu lugar posto. A cidade é também tudo o que não se encontra nela e o que se sente falta nela – as lacunas de sua estrutura, desconstruída pela violência da guerra, aparece como identidade negativa e reativa – a cratera é a afirmação negativa da terra que lhe falta.
E nessa falta, nessa aparente tristeza da falta, reside um olhar alegre pelo que reafirma. A ponte que falta, os prédios sem os últimos andares, a biblioteca sem paredes – Godard constrói uma cidade em ausência. Olhar uma cidade é olhar também o que ela nos priva, o que ela sugere que esteve ali antes, o que ela denota como destruição, como jogo de erros das afirmações concretas. Olhar a cidade em Nossa Música se localiza também como essa abertura ao que substitui os espaços e aquilo que não está mais ali como proposição. Esse sentido fantasmagórico da cidade que reside nas sombras restantes – ruínas vistas, também ruínas de imagem, de cinema. Olhar a cidade, enquadrá-la, tem aqui outro ponto de reflexão: a criação pictórica da imagem que não se vê. Olhar a cidade não se confunde aqui com o que ela excede, mas pelo que nela falta, pelo que esta nos pedaços, nos ângulos incompletos, nos buracos no solo,  nos envelhecimentos das estruturas, nos quadros limites, nos extra-campos que ela não realiza e sugere como lacuna. A cidade cratera, a imagem cratera, acima de tudo, deseja.
* * *
De que forma o cinema brasileiro hoje tem encontrado, olhado para as cidades que o emergem?
Em nossa crise de linguagem, em entremeios televisivos cenográficos e esforços de investigação dramatúrgica, fica aqui um movimento sugerido ou intuído: entender, antes da trama, do diálogo, da ideologia discursiva, o que emerge das cidades, dos espaços visuais em que nos debruçamos. Não os temas, mas as formas. Cidade moderna e cinema crescem juntos – e se criticam e reformulam em diálogo. Se a cidade e o urbano já não são mais aqueles, o cinema também não. A decadência mútua de linguagem, e a sua recorrente insurgência contra a sua derrota, não à toa acontecem em paralelo. É também uma crise de linguagem do urbano. Uma crise de frutos belíssimos, que vão também às fronteiras com a eternidade e o contra-sonho que as cerca (cito Tropical Malady de Apichatpong Weerasethakul) ou ao microcosmos de sua política (Edifício Master, de Coutinho). Reconstruir as cidades e sua dinâmica, hoje, é também reconstruir a forma de construí-las nas imagens. Fugindo do ideal de nação que nenhuma lente enquadrada, de país que nenhum microfone captura, do território generalizado, a cidade como cinema, como o quadro, é objeto primordial de imanência do que está ali e do que falta, nunca do todo. A cidade (pequena, media, minúscula, grande) está presente e é imagem e é som: o país não. E cinema é, de alguma forma como os mapas, uma questão também de escala.

sábado, 21 de julho de 2012

MONSTRUOSIDADE MARAVILHOSA


por Felipe Bragança


(publicado originalmente em O GLOBO, Outubro de 2011)

Arquitetos, urbanistas, escritores, cineastas – esta aqui é uma carta: há algo de muito relevante que precisa vir à tona nos questionamentos sobre as formas e os caminhos da cantada “revitalização” da cidade do Rio de Janeiro, e que está além da especulação imobiliária ou da ação policial nessa ou naquela ára da cidade como forma de controle criminal. Trata-se aqui também da economia simbólica da cidade e do que está em jogo nela nesse momento histórico de “limpeza” e “ordem” onde o contraponto do “inferno da violência”, parece querer se erguer uma cidade calcada numa representação plástica de si mesma.


A pergunta que me faço é: a re-ordenação de uma cidade passa necessariamente pelo desaparecimento de seus monstros e fantasmas? É impossível  pensar uma cidade menos cruel com seus habitantes sem que no conjunto social da crueldade se inclua também aquilo que há de positivo e afirmativo no imaginário violento e caótico do Rio, hoje? “Positivo e afirmativo?” Sim. É importante que na recomposição de signos que a cidade hoje passa, se coloque em cheque a idéia da violência como um dado meramente negativo, criminal, perigoso ao bem-estar da cidade. E se perceba que a pacificação policial da cidade não pode significar uma pacificação de seus signos, de seus mistérios, de seus delírios e sua imaginação. Zerar as mazelas da cidade e substituí-la por um projeto asséptico e ordeiro de urbanidade é mesmo a única ação possível para uma ocupação mais complexa e democrática da cidade? Como pode sobreviver um organismo vivo – cidade, corpo – se seus medos e delírios forem varridos como erros, se seus ruídos forem banidos como “falhas no sistema”.


Depois de duas décadas cercada pela dicotomia “paraíso tropical” x “inferno da violência”, a cidade respira hoje ares de sobrevôo sobre si mesma – como se fosse possível mover um corpo complexo da urbes por um grande processo de panorâmicas onde Capitão Nascimento e Blue (o papagaio azul de “Rio”) se encontram entre as nuvens numa síntese perigosa: a “cidade real” é um dado a ser negado porque desumano (o personagem foge para Brasília como paladino da justiça) e a cidade sonhada é algo a ser celebrado também porque desumano.  Entre a negação absoluta de suas entranhas de corrupção e a celebração de suas maravilhas simuladas, o Rio se insurge contra si mesmo e a favor de uma imitação de futuro. Que esta é uma cidade de imitações, n˜åo é novidade: o Rio já quis ser Lisboa quando Lisboa já havia, já quis ser Paris quando Paris já havia, Miami quando Miami já havia… e agora quer , enfim (?), ser o Rio. É evidente que, como cidade de imitações, a cidade precise se espelhar em si mesma como imagem ícone/cartão-postal para se afirmar. Mas esse é o desafio simbólico: como lidar com uma cidade que quer se imitar? Quer tenta cada vez mais ser parecida com aquilo que sonha de si – como numa plástica, num plágio? É evidente que nesse processo de imitação, de mímica, todo tipo de erro, de ruído, de forma menos polida, é contraproducente para o imitador – e a cidade hoje como um mímico parece se espeplhar nos gestos mais facilmente identificáveis dessa cidade mitológica e paradíaca à beira mar que um dia a Bossa Nova cantou como desejo e que hoje se transformou numa espécie de “obrigação moral”, como norma de conduta. Mas uma pacificação precisa memsmo ser confundida com uma apaziguamento das forças criadoras da cidade? A Lapa imitará apenas a Lapa, o samba o samba, Ipanema Ipanema, o cristo o cristo, o carnava o carnaval. Seremos uma cidade melhor se limitarmos de nosso imaginário os nossos erros, desvios e defeitos? Filha de seu caos original, essa cidade criada em torno de um porto, receptora e liquidificadora de signos, pelo mangue e pelo aperto entre o mar e a floresta – O Rio de Janeiro nunca foi encantador e potente por ser confortável e aconchegante, acolhedor. Desde sempre, sua sedução se construiu pelos mistérios de suas ruas, pelo sangue no asfalto, pela floresta de fanstasm, escravos fugidos, crime,s medos, sonhos, umidade, calro demais, desamparo. A potência estética e criativa do Rio sempre esteve ligada diretamente a seu lugar de desafio, de certo distanciamento sedutor que dava a ela mais vivacidade do que a de um balneário de eventos de corpo aberto para ser ocupado.


O que eu estou tentando dizer é que os signos da insegurança, da dúvida, das sombras, do incerto, sempre foram essenciais para o lugar da cidade como pólo de ebulição criativa,   de uma cidade teimosamente encrustrada num desconforto geográfico e fruto do embate, Criminalizar a violência cultural do Rio de Janeiro seria negar a gana fervente que deu origem a alguns de seus maiores patrimônios imaginários. Sempre foi da febre (não da saúde) que a cidade gerou seus gestos mais politicamente potentes, culturalmente impactantes e geradores de novas possibilidades de vida e representação. Junto da retomada dos espaços físicos pelo Estado diante de uma criminalidade que se apontava descontrolada, é preciso também uma retomada do próprio conceito de violência e medo e delirio e fantasmas nessa cidade densa, espirituosa, mosntruosa.


A cidade não pode se travestir de princesa delicada e negar seus gestos sanguíneos, violentos, fortes. O risco e a perda simbólicas seriam incalculáveis. Num panorama politico de ações de limpeza, me parece ser papel dos escritores, dos cineastas, dos artesãos do imaginário, uma dedicação diária a se trazer a tona nossos montros, fantasias e fantasmas como andídoto dentro do panorama de deflação do espírito em que o novo planejamento da cidade nos tem levado. Uma cidade que possa retomar a si mesma não como baile de debutantes bem perfumado, como peeling negando o erro, mas como festa necessariamente inconclusa e porosa. Diante do realismo pacifista ou belicoso dos telejornais e do discurso oficial, é necessária uma reação fantasiosa, delirante e mágica da cidade, lidando com gêneros, com sonhos e ilusões: através de filmes, livros, histórias, músicas, pulsos culturais capazes de manter viva a monstruosidade maravilhosa da cidade e seus enigmas. É um território de luta estética essencial hoje para as ações de nossos escribas, criadores de imagens, filósofos, músicos – manter viva a fantasmagoria das ruas, que nos proteja de uma cidade sem sombras, sem dúvidas e sem delirios. Uma economia imagética da fantasia, do mistério, da margem e do onírico –  vistos não como fuga do “real incontornável” mas como uma necesssária acumulação de camadas poéticas que venham na contramão combative da raspagem cultural pela qual a cidade vêm passando em seu intuito de cidade clara, ampla e limpa como um salão de eventos internacionais.


É hora de convocar e atualizar os porões do centro da cidade, os vultos das ruas, os fantasmas de nossa memória de embates e rupturas e as máscaras que possam ampliar as expressões de nossos rostos para além do medo paralisante que nos tomou nas últimas décadas ou da bonança apaziguada que se vende agora como antídoto. É lugar do gesto da arte, nessa cidade que se quer nova, reunir a experimentação com a memória mágica (não a nostalgia de quem acha que a potência cultural da cidade parou nos anos 60) de nossas festas e ruas e gerar alguma brecha desviante em direção a uma cidade que sonhe e delire e se desafie… E que não se aceite como uma cidade congelada (dopada?) em um menu de paisagens.